10.6.09

VOO 477 E UM POUCO DE FILOSOFIA



Voo 477 e um pouco de filosofia.

Sidinei Cruz Sobrinho

O acidente com o Air France assim como qualquer outra tragédia que ocorra no mundo moderno perde sentido com a mesma velocidade que causou seu impacto. Todos ficaram compadecidos com tamanha dor. No entanto a maioria vê as tragédias do mundo moderno sob o olhar do turista.
Quero dizer, assistimos ao mundo numa exterioridade inerte. O olhar e o pensamento percorrem os fatos sem incluí-los na vida. Todo bem e todo mal se tornam como que souvenier. Segue-se o mundo, conduzido por um guia turístico: “Vejam, ali ocorreu o acidente com o voo 477. Aqui os senhores podem ver um mendigo. Logo a frente assistiremos, ao vivo, a um assalto”. Por ai seguem as paisagens sempre acompanhadas da passageira admiração e ou indignação do observador turista. Este, por sua vez, precisa de um guia midiático porque é incapaz de olhar por si mesmo. Quando se olha pelo olhar do outro, vive-se uma vida inautêntica. Daí a rapidez com que os fatos do mundo moderno perdem sentido.
É necessário estimular a atitude de ver as coisas como se fosse pela primeira vez. Nesse sentido o olhar se detém sobre o que é observado e dessa contemplação nasce a reflexão. Como afirmava Sartre “O homem decifra o futuro por meio das coisas. Mas só quando se está arraigado a elas”.
Eis a condição para que deixemos de trivializar os fatos. Na Grécia antiga a tragédia tinha um cunho pedagógico. O trágico ensina a viver melhor, a criar ou resignificar valores. Mas para isso é necessário uma vida autêntica. É preciso mais que estar no mundo, é preciso “SER” no mundo. Dentre todas as possibilidades da existência sempre está a possibilidade da morte. A questão principal é: Qual o projeto dentre os projetos possíveis que escolho antes da morte?
No voo 477 estavam pessoas cujos projetos eram autênticos. Mas certamente também havia aquele que como muitos de nós, vemos o mundo sob o olhar do turista, sob uma vida inautêntica. Sinto muito pela morte de um grande maestro e de outras pessoas que encontraram a possibilidade da morte. Certamente tal possibilidade se deu sob uma forma mais indesejável e isso nos impressiona, assim como todas as outras coisas que passam pelo olhar dos turistas do mundo moderno. Minha pergunta, no entanto é: Por que a tragédia contemporânea é tão pouco refletida? Por que quase ninguém mais fala o dialeto da fome, da violência, da exclusão? Talvez porque a velocidade do mundo moderno permite apenas turistas e impede de se viver arraigado à realidade. Talvez porque, como diz Warat, seja necessária “uma filosofia de jogos novos com o mundo. Criadora de novos valores e de novos princípios, uma filosofia de alteridade que permita a produção de diferença com o outro”.
Para que o impacto da vida moderna não seja passageiro e trivial como o impacto do olhar turístico, guiado e alienado por outrem, é preciso aprender a ver as coisas como se fosse pela primeira vez. Ao contrário a vida continuará escorrendo como areia entre as mãos. Vida na qual se acredita estar vivo porque se escova os dentes e se arruma ao amanhecer. Porque vai trabalhar ou porque tem medo. Vida, cujos dias causa impacto, mas não deixam rastro.