27.7.08

COELHOS, TARTARUGAS E HUMANOS.


Os coelhos, as tartarugas e os humanos.

Sidinei Cruz Sobrinho


Os coelhos, as tartarugas e todos esses seres que aprendemos no ensino fundamental a chamar de "animais irracionais" são tudo aquilo que devemos ser para se viver na constante "felicidade". Quero dizer que a causa da infelicidade ou dos momentos de angústia existencial é a razão. Para não parecer um desses filósofos porra-louca que só criticam o cristianismo, referencio, como um dos argumentos de sustentação da minha hipótese, o próprio cristianismo: "Felizes os ignorantes, porque herdarão o reino dos céus". Esse trecho do sermão da montanha, aliás essa montanha deveria ser muito alta, pois o ar rarefeito deve ter afetado o cérebro daquele que a afirmou isso. (Pronto, agora voltei a ser filósofo porra-louca). Os ignorantes herdam o reino porque não questionam a possibilidade desse reino sequer existir. Assim, os irracionais e os ignorantes (esses são racionais, mas agem como os coelhos, as tartarugas...), todos marcham na mesma direção, ou por instinto, no caso dos primeiros ou por alienação, no caso dos últimos.
Quando pensamos nos angustiamos. É importante ressaltar que não se trata de uma angústia pessimista e depressiva. O desconforto existencial causados pelo pensar é característica da autocosciência, como diz Foucault; do ser autônomo (nomia = norma; auto = a si mesmo) que se contrapõe ao ser autômato (mecânico, programado externamente) como explica Eric Fromm; da liberdade no sentido que fala Jean Paul Sartre.
A autoconsciência é a capacidade de pensar a si mesmo como um ser capaz de decidir como, onde e quando agir. Daí deveriam nascer a ética, a política, a estética, a ciência e todas as ações humanas. Digo deveriam porque não são apenas os filósofos que agem sempre ou vez ou outra como porra-louca. Dúvida disso? Vá ao senado, à igreja ou a grupos burgueses. É da capacidade do ser humano pensar a si mesmo entre os demais seres que o torna capaz de "situar-se" e agir. Aristóteles se enganou ao afirmar que o homem é um animal político, um ser que, para viver fora da sociedade (pólis) ou é um deus ou um bicho. Se enganou porque a pólis hoje parece se regida por bichos e deuses sem abrir espaço para a reflexão. E novamente todos marcham ignorando a realidade. Estão na realidade mas não a pensam. Sendo assim a ausência da autoconsciência e todos buscam a felicidade no reino dos céus, que afirmam não ser aqui, ou na inevitável morte como mais um passo da natureza animalesca dos coelhos, tartarugas e esses seres que chamamos irracionais. Acho que fiquei maluco, mas vi um coelho dirigindo e uma tartaruga comprando uma casa na praia.
Após pensar a si mesmo no mundo através da autoconsciência é que conquistamos autonomia. A capacidade de dizer a si mesmo as próprias normas é o que caracteriza um homem autoconsciente. O coelho não diz: "Vou comer a cenoura porque estou com fome". Ele sente fome e come a cenoura que encontra sem pensar se poderia ter outro cardápio ou simplesmente não comer. Já viu algum bicho fazer greve de fome? Os humanos fazem greve de fome ou comem exageradamente porque decidem comer ou não. Sim, eu sei que alguns não comem! Mas é porque aqueles sem autoconsciência que falei acima, são deuses ou bichos capazes de considerar normal que alguns não tenham direito a comer ou que se não o fazem é por mera vagabundagem. O ser que não tem autoconsciência age como um autômato. É aquele idiota que vive dizendo que as coisas poderiam ser diferentes mas que a sociedade impões regras que devemos seguir. Um dia quero tomar um café e fumar um cachimbo com essa tal sociedade. Você já a viu? Pessoas que falam isso são autômatos. Repetem ordens, conceitos sem questioná-los. Seguem regras e não sabem dizer por que devem segui-las, ou porque essas regras são boas esse ainda são boas para a vida em sociedade em que vivemos. Quando muito, são moralistas medíocres que invejam aqueles capazes de questionar e agir mostrando que nem toda regra social deve ser mantida. Autonomia é muito diferente de libertinagem. Dar a si mesmo as próprias regras é o contrário de fazer tudo que quer. É agir como quer, mas somente após ter considerado tudo o que foi possível considerar. Desta forma não há individualismo, há sim ação livre com respeito aos coelhos, às tartarugas e também aos humanos. Só posso mesmo ter ficado louco, mas também vi uma tartaruga vestindo terno e ateando fogo num humano que dormia encolhido como um coelho na parada de ônibus.
Somente após a reflexão (autoconsciência) e a capacidade de ser autônomo é que se pode falar em liberdade. A liberdade exige responsabilidade. Responder com habilidade pelas ações que julgamos necessárias. Sempre exigimos liberdade e quando a temos não sabemos o que fazer porque esquecemos de pensar a nós mesmos. Ser livre é, em última estância estar sozinho. Sozinho não significa isolado. Estar só é estar quer dizer que toda a ação inicia e termina em razão de si mesmo. Ë impossível não temer e se angustiar frente a tamanha responsabilidade. Ter consciência dessa situação significa pensar antes de agir, ao contrário dos ignorantes que agem sem pesar na ação. A diferença primordial está no fato de que os ignorantes culpam a Deus, à sociedade por seus erros. Os livres são os únicos responsáveis por suas ações. Se um bom senso predominar, pessoas que pensam agem com maior responsabilidade, ética e respeito, inclusive pelos coelhos e tartarugas, aos outros humanos e a si mesmo. É aquilo que Foucault chama da "ética do cuidado de si". Definitivamente fiquei louco, ontem eu vi um coelho dizendo que a tartaruga não era livre porque carregava sua casa por todos os lugares. Um mendigo matou o coelho, fez um ensopado no casco da tartaruga e disse: "Eu sou livre para comê-lo assim porque não sou livre para ser humano."
Deveríamos aprender que os humanos são diferentes dos animais irracionais não apenas por sermos racionais, mas por dever usar essa racionalidade para tornarmo-nos autoconscientes, autônomos e livres. Do contrário em nada seríamos diferentes dos coelhos e das tartarugas. Uma felicidade constante só seria possível num reino cujos humanos fossem como Alice no país das maravilhas: igual aos coelhos, tartarugas e sem nenhuma razão.


Sidinei Cruz Sobrinho
Passo Fundo, 27 de julho de 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o texto professor. Acredito que tenha sido o seu melhor (entre os que eu li),