29.12.11

ESPELHO.

Espelho.





A realidade me comove mais que julgas e me preocupo com o ser humano de tal forma que sofro há anos com isso. Não sou e nunca tive a intenção de ser perfeito. Apenas busquei a felicidade. Considero que viver poderia ser bem mais fácil do que a maioria das pessoas pensa ser. Sei perfeitamente que há situações que nem uma teoria ou minha pobre filosofia são capazes de explicar e que nos resta apenas vivê-las, seja uma grande dor um amor intenso.
Li inúmeros livros na minha curta vida. Mas isso não me fez mais inteligente ou me possibilitou, necessariamente, ter a razão sobre minhas compreensões. Comecei a ler como fuga da minha solidão. Por anos um livro tem sido sempre meu melhor amigo e o único que houve o grito confuso da minha alma. A conclusão que tirei deles é que não se julga a inteligência de um homem pela quantidade de livros que lê, mas pela sua capacidade de ler o mundo. Muito embora seja necessário ler muitos e bons livros antes de se ariscar ler a realidade. Do contrário se cai na trágica fantasia e nas repetidas medíocres opiniões.
Quando era ainda criança, nove anos de idade, e trabalhava de "bóia-fria" nas lavouras e meus pais me "educavam" severamente, sempre me sentia um inútil. Aos poucos comecei a ganhar coragem para compreender algumas coisas no mundo. Depois, mesmo temendo os resultados comecei a formular algumas opiniões pessoais sobre o Mundo, o Homem, e Deus. A partir de então não mais sofri a solidão e a exclusão humana que me tornava invisível entre milhares de espectros humanos que mau sobrevivem. Mas, por outro lado, comecei a ganhar visibilidade e com isso inimigos e tenazes críticos ao meu modo de ser.
Começou a me incomodar a capacidade que algumas pessoas têm de julgar e não tolerar as diferenças. Lembro John Lennon que dizia: "As pessoas precisam se trancar entre quatro paredes para fazer amor enquanto muitos se matam a céu aberto". Como podemos ficar julgando os pequenos prazeres individuais se esquecemos o vício da humanidade em excluir e desconsiderar as pessoas em sua dignidade? Talvez porque, no primeiro caso, julgamos os outros e se consideramos o segundo caso, a universalidade da ideia de dignidade humana, os juízos recaiam sobre nós mesmos, sem distinção.
Senti grande alegria quando, depois de muito esforço e estudo consegui um espaço na academia científica. Sou apaixonado pelo mundo do conhecimento e talvez nisso consista o meu maior erro e seja a causa dos meus maiores infortúnios.
Sempre considerei a faculdade como o espaço por excelência do diá-logo (como confronto de razões). Nesse lugar poderíamos questionar e (re)significar muitas coisas, não todas, mas coisas significativas para o bem da humanidade. Imaginei, na minha idiota filosofia, que poderia conversar com meus alunos e colegas sobre temas importantes, discutir ideias, rever meus próprios conceitos quando identificadas falhas através das sábias ponderações dos meus interlocutores. Quando entro em uma sala de aula imagino estar em um laboratório, onde as cobaias, sãos as ideias e os pesquisadores, cada um de nós alunos e professores, com experiências e pré-compreensões que, na roda do discurso, poderiam gerar conhecimento.
Um dia li em algum lugar uma frase de Einstein que dizia "não podemos nos desesperar dos homens porque nós mesmos somos homens". Essa frase me ajudou muito pois estava completamente angustiado com a existência (coisa comum na minha vida). Resgatei alguma esperança, maldita esperança da qual não podemos nos livrar, e voltei a repensar e questionar o mundo e suas circunstâncias, não em busca de uma resposta definitiva, mas de uma compreensão da definitiva busca por questões que realmente importem.
Percebi que algumas pessoas levaram a sério isso tanto colegas professores como alunos. E ficava feliz quando, mesmo não convencendo ninguém de que meu modo de ver as coisas são os melhores, ao menos isso servia de alavanca para o pensar reflexivo e crítico destas pessoas. Ou seja, não estou interessado que os outros ajam conforme minhas ações, mas que os outros saibam por que escolhem agir como agem. Defendo a autonomia e a liberdade.
Ultimamente alguns acontecimentos me fazem começar a confirmar o que já desconfiava há algum tempo. Ser autônomo e livre tem um preço muito alto, o preço da tolerância, o preço da alteridade. Significa ter a capacidade de compreender o outro e de pensar apenas o que interessa a todos e não apenas a um indivíduo ou a uma pequena e conservadora cultura. O preço maior disso tudo pode ser a execração da sociedade por se ter uma compreensão diferenciada do que é bom, belo e justo conforme a época atual. Talvez isso explique o que aconteceu com Nietzsche, Sartre, Luter King, Gandhi, Jesus Cristo, Sócrates, Darcy Ribeiro, os intelectuais da época da ditadura (e por falar nisso, ela acabou mesmo?).
Minhas últimas conclusões se direcionam para o fato de não se poder pensar a vida e suas surpresas com todos e em todos os espaços da academia. Nem todas as pessoas servem para isso. O que não quer dizer que não sejam completamente úteis para outras coisas. Como poderia eu estar aqui escrevendo se um operário do campo não suasse forçado para ceifar a terra e possibilitar meu alimento? O que quero dizer é que algumas pessoas estão fora de foco, fora do espaço para o qual realmente tem competências e habilidades para agir com utilidade ao mundo. Sendo assim, em muitos casos devo apreender a calar e a dissimular, caso eu ainda veja algum sentido em me manter no rol dos homens de ciência acadêmica atual. Do contrário, a não ser que realize uma revolução de impacto, voltarei à invisibilidade. Esta última opção certamente me trará maior tranquilidade ao corpo e me esquivarei dos dissabores dos medíocres, mas não mais me trará a paz na mente como tem aquele que sempre esteve na ignorância.
Esse é um dos grandes problemas disso tudo, uma vez que se reflete sobre certas coisas, não há mais como se livrar desse fantasma. Pensar é algo difícil de conseguir e impossível de deixar.
Outra coisa que me espanta é que um grande número de pessoas é desprovido de qualquer reflexão. Forma-se o chamado inconsciente coletivo que muda de um paradigma falacioso ao outro como rebanho levado pelo instinto. Pior que isso, é o fato de serem aqueles indivíduos que menos pensam a vida, que mais são individualistas e egocêntricos, os que estabelecem juízos de valor sobre questões mínimas ou ainda divergem completamente sua leitura do fato, pautados em moralismos vazios. Sinceramente, não consigo compreender como que, frente à tragédia do aquecimento global, a violência civil quase que institucionalizada, a miséria humana que pede pão ou coleta papel na lixeira da nossa casa, diante de tudo isso, alguns pessoas ainda considerem significante passar horas julgando a filha da vizinha que mudou três vezes de namorado em um mês. Onde está a racionalidade? É caos que se mostra? É Kronos, o tempo, devorando seus filhos? Ou é a imbecilidade e a mediocridade humana que se revela?
Não quero que a beata deixe de ir à igreja todos os dias porque eu não vejo sentido nisso, nem que a ninfeta depravada deixe de passar noites de volúpia porque julgo que isso seja pecado e tenho medo da condenação divina. Gostaria apenas de um espaço para a tolerância. Que ocupássemos nossos tempos findos em agradáveis rodas de amigos ou em assíduas discussões sobre a vida em si. Quero a tolerância com os tolerantes e a justa pena aos intolerantes. Mas afinal. Até que ponto se deve tolerar os intolerantes?
Saberei que estamos realmente pensando a vida, não mais vendo grupos se unindo em defesa dos seus direitos, mas quando vir o diferente defendendo a diferença. Quando um negro defender as causas de um indígena, quando um tradicionalista "machista" defender o direito dos homossexuais, quando um homem fizer defesa ao espaço da mulher como igual, quando o jovem gritar em praça pública o direito dos idosos e quando aprendermos a ouvir antes de julgar.
O mistério humano me causa amor e pânico. Vivo em muitas situações o paradoxo do presente frente a inevitável vinda do futuro, que, por si mesmo, já refutou inúmeras teses morais. O que significava o divórcio há 20 anos atrás e hoje? Julgamos os homossexuais, mas nossas matrizes africanas e indígenas viviam a liberdade sexual como algo bom e espiritual. Há anos, como lembra Darcy Ribeiro em O povo brasileiro, os jesuítas condenaram a antropofagia, mas ofereciam o corpo e o sangue de cristo na santa missa. Um pouco de visão ampla para além das barreiras de nossa cultura, nos mostra que há um multiculturalismo estranho e que questiona nossas verdades. Podemos até não concordar a agir como eles, mas precisamos tolerar, precisamos respeitar a Alteridade, o encontro com o "Outro".
Isso tudo me coloca na quase que inevitável tarefa de refrear parte do meu pensar e aceitar ao menos um pouco a submissão às regras do sistema atual. Continuar desenvolvendo minha filosofia me causará sérios problemas com a censura externa. O preço, como já falei, será auto. Por muitas vezes sinto disposição para pagá-lo. Mas, por outro lado há algo hoje que me impede disso: o meu filho que irá nascer e com a vinda dele essa minha inseparável mania de acreditar, como Rousseau, de que ainda podemos resgatar os resquícios de bondade da natureza humana.
Compreendi o sentido da filosofia com Hegel, quando esse afirmava: "Pensar a vida: eis a tarefa". Mas devo admitir que às vezes a tarefa seja demasiado árdua. Se o velho Aristóteles tinha razão de que uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida, então não há como ser útil sem o espaço da razão que dialoga com a emoção e a condição humana. Desta forma, se não se pode pensar a vida, seja por incompetência pessoal ou por limites externos talvez seja melhor não mais fazer parte dela. Ou então persistir e pagar o preço a custa do sofrimento próprio e dos seus próximos.
Há pessoas com as quais esse diálogo ainda seja possível e sei que elas aceitarão ouvir e discutir a vida. Sou jovem, mas sinto nas costas um peso árduo do pensar filosófico. Não sei se consigo não pensar e considerar tudo simples ou indiferente. Os mais experientes na vida e nas surpresas humanas talvez possam me ajudar. Tenho medo. E o meu maior medo hoje, é o de não sentir medo.

Sidinei Cruz Sobrinho
Passo Fundo, inverno de 2007.

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