23.10.06

LÁGRIMAS DE FERRO

Lágrimas de ferro

por Sidinei Cruz Sobrinho[1]

O menino corre sorrateiro,
Entre as lâminas paralelas.
Seu pai, papeleiro,
Recolhe o lixo da cidadela.
Sua mãe, suja e mal vestida,
Pede comida na casa das donzelas.
Sua irmã, prostituta, drogada,
Saiu na fria madrugada...
Ainda não voltou pra casa.
Sua casa?
É a mesma casa dos seus dois tios,
Um cunhado, dois “meio-irmãos”, o avô,
E um primo soldado.
Soldado do crime organizado,
Que luta contra o Estado e a democracia que os excluiu.
Sua casa tem três metros quadrados.
Um lado é de lona preta e gelada;
Tão gelada quanto a alma da mulher donzela
Que lhe negou uns centavos para o pão.
O outro lado da casa é de papelão.
Aquela casa não é engraçada;
Não tem nada,
Mas alguém mora ali.
Mora o menino que corre sorrateiro,
Entre as lâminas paralelas.
Morava sua irmã, que na madrugada
Foi estuprada e aos pedaços, no trilho encontrada.
Morava seu pai, que puxava o carinho de papel
Como um animal selvagem;
Teve fome, comprou cachaça;
Soube do ocorrido;
Preferiu não ter nascido, foi embora...
Tornou-se mais um soldado,
Foi lutar contra o Estado.
Naquela casa, morava sua mãe,
Que voltou da cidadela, sem saber
O que a esperava.
O menino corre sorrateiro,
Entre as lâminas paralelas.
Sua mãe ouve o apito
Do algoz maldito que se aproxima.
O medo lhe cala o grito.
O menino brinca; não ouve,
Apenas sente a batida do martelo
Que se move sobre as lâminas de ferro.
De ferro foi a vida.
De ferro seu trilhar.
Pelas lâminas de ferro,
Separado da cidade bonita.
A cidade que não grita
Porque de ferro são seus olhos.
Olhar que não quer ver
A mãe jogada, aos prantos,
Nos “entrecantos” da cidadela,
Segurando do filho os pequenos chinelos,
Banhados em lágrimas,
Lágrimas de ferro.


Na capital das farmácias e das construções “pós-modernas”, há décadas foi gerado um menino feio e problemático chamado Beira Trilhos. Esse “Corcunda de Passo Fundo” foi escondido e ignorado pelos inefáveis defensores da tradição e de um populacho inculto e ludibriado pela política do pão e do circo. Enquanto são gastos milhões em obras faraônicas, (tão faraônicas que antes mesmo de serem inauguradas apresentam problemas como se já existissem há milênios sem restauração alguma) e se discute a construção de um autódromo, tão necessário para esnobar o poder de alguns coronéis, o Corcunda passofundense traduz o escárnio de nossa pequena burguesia provinciana.
Há várias pessoas procurando formas para ajudar o menino feio a superar sua fobia social. Fobia essa que se canaliza em atos de violência urbana e condições de vida subumanas.
O que fazer?
A solução vai além de campanhas de agasalho ou meia dúzia de beatas distribuindo pães aos excluídos que nós mesmos excluímos. Talvez para termos como merecer o céu. O céu não importa agora. O que importa é que milhares de pessoas vivem os infernos bem ao nosso lado e o diabo quer tirá-las de lá e jogá-las em outro canto qualquer. Os assistentes de direção desse inferno todos sabem como e onde poderiam estabelecê-las, mas como a preguiça só pode ser mesmo coisa do diabo, eles não movem uma palha pra isso. Até porque se o fizerem de qualquer forma, vão apenas transferir o problema de lugar e o que se pretende é resolver o problema.
Eureka!!!!!!!
Eis a solução! Na próxima jornada da literatura, vou convidar o menino, que agora já é bisavô, e toda a sua família para embarcar no primeiro trem. O que não vai ser difícil, uma vez que o trem passa por cima de alguns deles quase todos os dias. Vamos subir todos e vamos embora pra Passargada, porque aqui nós não somos amigos do rei.

[1] Filósofo, Mestre em Filosofia Política, PUC/RS, Especialista em Direitos Humanos; Professor FAPLAN.

Um comentário:

Lu Trindade disse...

http://www.logosofia.org.br/home/default.aspx
Prof.veja este site,
até a proxima aula,
Lu Trindade