27.8.12

TAPERA DA POESIA



Eu tenho uma tapera. Na verdade não é minha. É alugada. Não. Na verdade eu nem aluguei ainda, apenas estou imaginando que já moro lá. Eu fui vê-la na semana passada. Eram oito horas e quarenta e cinco minutos da manhã quando peguei as chaves.
Tapera significa casa velha. É isso que ela é: uma casa
velha. É velha, mas fica num lugar muito bonito. Um lugar silencioso, no meio do mato. Um mato além do horizonte. Há muito tempo ninguém mora lá porque a sujeira tomou conta. Penso que dentro de um mês eu possa deixá-la limpa.
Quando eu cheguei à minha casa, que não é minha ainda, senti paz no espírito. O espírito é alma. Alma é psique. Meus alunos de filosofia sabem que quando eu me refiro a alma não estou falando da alma cristã, no sentido dualista que Agostinho parafraseou de Platão. Quando eu falo em alma falo no sentido aristotélico, ou seja, falo de inteligência. A minha inteligência é minha alma. Minha alma é minha, não é alugada.
Em poucos minutos eu vi a casa, vi o pátio... Observei que há ferrugem nas aberturas e que algumas telhas precisam ser trocadas. Percebi ainda que seja difícil organizar os móveis dentro dela porque além de velha ela é pequena e mal dividida. Mas pequena, assim como as crianças, ela é extremamente grande em seu silêncio e na sua inocência. Por isso, ela me segurou lá por mais de quarenta e cinco minutos.
Abrindo a janela da minha tapera, dá pra colher jabuticabas. Adoro essas frutinhas pretas e lustrosas que parecem te olhar. Talvez seja por isso que gosto de olhares negros como jabuticabas. Olhares azuis também são belos como o céu. Mas as jabuticabas são mais accessíveis que o céu! Perto dessa janela é onde colocarei meus livros. Na casa da frente mora uma senhora que cultiva orquídeas nas árvores. Parece uma mulher de alma serena. Aliás, imaginei o sereno da manhã naquele lugar e os meus pés poderiam senti-lo no gramado. Na verdade não há muito gramado porque as estepes tomaram conta. Isso não é problema porque dentro um mês de trabalho darei vida nova ao gramado. O único problema é que vou precisar de muitas ferramentas. Talvez algum amigo me empreste algumas. Bem, é verdade que antes talvez eu tenha que tomar emprestado um amigo de alguém. Acredito que isso não será difícil de conseguir.
Há belas árvores ao redor da minha casa, um amplo espaço para deitar sob o luar se tiver vontade ou mesmo esticar uma rede preguiçosa às vezes. Ouvi o cantar dos pássaros o tempo todo. Os pássaros que ouço na cidade nem sabem mais cantar. A poluição e o barulho devem ter desvirtuado seus instintos musicais. Aqui há outro detalhe, minha tapera fica há oito kilômetros da cidade. Eu preciso vir todo o dia para a cidade, porque preciso trabalhar. Gosto do meu trabalho na cidade. Não gosto mais da cidade. Uma vez eu gostava. Mas isso era até algum tempo atrás quando eu ainda tinha que provar aos homens da cidade que poderia ser um porco capitalista como todos eles. Agora não preciso mais provar isso porque quero cuidar um pouco de mim mesmo. Isso me gera um terceiro problema, esse um tanto mais grave, pois não sei quem sou. Ora, se não sei quem sou como posso cuidar de mim mesmo? Por outro lado a minha tapera não é minha e estou disposto a cuidar dela. Sendo assim, vou ter que aprender a cuidar daquilo que sou mesmo sem saber exatamente o que sou. Isso parece complicado.


Quando eu deixei minha tapera minha alma parecia ter alcançado aquilo para o qual todos os homens tendem: a felicidade. Na medida em que retornava à cidade meu corpo sentia dores novamente e meus pensamentos pesavam. Os pensamentos pesam quando são problemas. Diferente são os pensamentos leves, aqueles que brotam do sabor pelo pensar. E na minha tapera brotaram muitos pensamentos. Até as folhas das árvores, mesmo as secas, exalavam poesia.
Voltei para a cidade e para meus pensamentos pesados. O problema é que lembro o tempo todo da minha tapera. E as lembranças dela são pensamentos leves. Fico triste agora porque gostaria muito, mas não sei se poderei continuar morando na minha tapera, porque a existência não é só minha. Tudo o que tenho é só minha alma e nem a conheço. Mesmo assim me permito pensar na minha tapera e como seria minha vida nela. Eu sentaria sob a sombra de uma árvore para fumar um cachimbo e ler... Deitaria sobre o gramado para fazer um poema... Subiria nas árvores não para ver além do horizonte porque já estou nele, mas simplesmente para subir... Eu escreveria poesias e daria de presente para quem fosse me visitar, e se ninguém fosse me visitar eu escreveria poesias também. Mesmo assim eu pensei: Por que não ariscar viver como um filósofo, boêmio e poeta, assim simplesmente livre com meu eu, se o encontrar é claro.
De qualquer forma se um dia você for me visitar o endereço é o seguinte: Siga além do horizonte na Rua do Jacarandá, Tapera da Poesia, número 3055. Trinta anos é minha idade hoje. Cinquenta e cinco anos é o mínimo que gostaria de morar lá.

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